Bruce Dickinson: e se ele não fosse capaz de cantar novamente?

Em uma longa entrevista para Matt Munday do jornal britânico The Guardian, Bruce Dickinson falou sobre o novo álbum The Book Of Souls, o tratamento contra o câncer e o futuro do Iron Maiden. O jornalista o recebeu em um pequeno clube no oeste de Londres e descreveu com detalhes o ótimo bate-papo com o vocalista. Confira!



Por Matt Munday

O vocalista do Iron Maiden adentrou a sala com meia hora de atraso para a nossa entrevista, ainda usando um capacete de ciclismo "verde-militar" e pedindo desculpas. Nos encontramos em um pequeno clube no oeste de Londres, cujo os poucos membros que lá estavam no início da manhã pareciam aquele tipo de pessoas que vende coberturas para integrantes da Oligarquia. Bruce Dickinson mora na redondeza, mas nunca havia estado lá antes. "Isso aqui é um pouco luxuoso demais!", comenta ele, mas é um comentário razoavelmente seguro de quem ganha mais do que todo mundo ali junto, mesmo que naquele momento ele se parecesse mais com um mensageiro do que qualquer coisa parecida com um astro do rock.

Havia se passado cerca de quatro anos desde que entrevistei Bruce pela última vez e embora ele esteja tão cheio de energia agora como naquela época, ele está visivelmente mais magro. A voz soa um pouco mais grave, como se tivesse acabado de passar uma hora complicada em uma consulta no dentista. Bruce faz uma pausa a cada alguns minutos para limpar a garganta. Tudo isso é bem previsível: pois Dickinson passou por uma batalha contra o câncer de língua - particularmente devastadora para um vocalista, passando por três cansativas seções semanais de quimioterapia e 33 seções de radioterapia. Mesmo após receber a noticia de estar completamente livre do câncer, ainda está em processo de recuperação. "Agora tenho o mesmo peso de quando eu tinha 17 anos", comenta ele. "Não recomendaria isso como um programa para perder peso, mas, sempre que puder verei qualquer coisa pelo lado bom".

No final do ano passado, Bruce estava mixando o novo álbum do Iron Maiden em Paris junto com a banda, quando descobriu um nódulo em seu pescoço. Dickinson não havia notado qualquer mudança em sua voz, então no começo ele simplesmente ignorou e continuou. "Eu não queria saber", comenta. "Pensei: tenho um álbum para terminar." Porém, o nódulo não desapareceu, então depois de algumas semanas o vocalista consultou um médico francês. "Ele apalpou minha garganta e logo depois enfiou as mãos na parte da frente da minha calça. Ele teve que sentir todas as glândulas, cada nó linfático. Então eu pensei: ou ele é muito amigável ou muito competente..."

É assim que Bruce relata o que se tornou um calvário terrível - ele brinca e faz piada. "As pessoas perguntam se estou planejando fazer uma turnê este ano, aí eu digo: 'Não, as razões são muito tumorosas de mencionar...' Ok, é assim que eu tenho lidado com isso", comenta. "Foi isso que me tornei. O que mais posso fazer? É como se, olha, eu posso morrer por causa disso - mas, por outro lado, eu posso não morrer. Vamos nos preocupar com isso apenas quando a hora chegar."

No retorno para a Inglaterra, ressonância magnética e tomografia confirmaram que o nódulo, que era do "tamanho de um grande morango", era na verdade um nódulo linfático perto da base da língua do vocalista do Iron Maiden, no local onde ela se curva para a garganta - e que era o segundo de dois tumores. O primeiro estava dentro de sua língua, próximo da parte de trás da garganta, do tamanho de uma bola de golfe. Isso afetou sua respiração? "Surpreendentemente não aconteceu isso. Eu não percebi nada." Ao menos, o câncer não havia se espalhado para outras partes do corpo, diz ele.

Depois veio a confirmação dos médicos, de que o câncer havia sido causado pelo vírus do papiloma humano (HPV), infecção transmitida pelo contato pele-a-pele e que na maior parte é inofensivo, mas pode, também, inexplicavelmente, causar o câncer. Pesquisas sugerem que o HPV é sexualmente transmissível - como o ator Michael Douglas declarou de forma polêmica em entrevista ao The Guardian, em 2013, na qual ele culpou o sexo oral pelo seu câncer na língua. "Então, todo mundo fica, oh, Michael Douglas... ha ha ha, ele está indo pra baixo na patroa", diz Bruce, "mas na verdade, ninguém sabe ao certo o que ele faz. Tive uma oscilação no início, e pensei: por que eu? Deveria sentir pena de mim mesmo? E então pensei, não vou ceder ao jogo da culpa: 'Oh Deus, é a vingança do universo por eu ter sido um menino travesso', ou é isso, ou aquilo... Não, não é . É aleatório. Merda apenas acontece. Então você lida com isso e segue em frente".



Com o início do tratamento programado para começar no início de janeiro, Bruce teve um Natal comovente em família, na sua casa no oeste de Londres com sua esposa Paddy e seus filhos Austin, 25, Griffin, 23 e sua filha Kia, 21. "Comi, bebi e estava tão feliz quanto eu poderia, pois sabia que perderia peso com o tratamento. Ninguém quer ser mórbido, mas eu não sabia quantos outros Natais eu teria - além de ter sido realmente uma ótima desculpa para me empanturrar!"

O que veio depois, foi em parte mais difícil para as pessoas próximas a ele: a impotência de ver alguém que você ama sofrendo enquanto você se mantém junto da melhor forma possível, é realmente muito difícil. A pessoa que está sendo tratada ao menos tem algo para se concentrar. Durante o tratamento a família de Bruce o levou para um terapeuta alternativo, um tipo de curandeiro, e Dickinson aceitou e foi de boa vontade, suspeita-se, tanto por eles como por si mesmo. "Me senti ótimo depois", ele conta. Bruce também tomou suplementos AHCC e extrato de semente de uva, após ler na internet que estes poderiam ajudar a reduzir o tumor.

Dickinson explica que as coisas só ficaram realmente "bem difíceis" nas últimas duas semanas de tratamento, quando ele não conseguia falar ou comer, sentia-se cansado o tempo todo e sua língua "doía como sodomia". Bruce diz que passou por tudo isso assistindo episódios antigos dos Vingadores e aos canais normais de TV, apesar de que, segundo ele: "estavam cheios de anúncios de seguros de vida e câncer!" Ele riu, embora rir na verdade causasse muita dor. Nesta parte ele estava em uma dieta só de líquidos, e teve que "mergulhar os dentes em papel toalha e bonjela para conseguir dormir, para que eu pudesse anestesiar minha língua - pois todos os nervos foram expostos depois da radiação. Me deram morfina oral para a dor - e na verdade foi muito decepcionante. Eu esperava ver elefantes cor de rosa ou tentar cortar minha orelha fora ou algo do tipo, mas não, eu apenas fiquei um pouco sonolento"

Mas ele já havia usado drogas com o Iron Maiden? "Não. Eu jamais poderia ter usado cocaína e feito uma turnê. Eu fumei maconha na universidade, e francamente, você só vai dormir e come qualquer merda estúpida. Nunca houve qualquer droga que tenha feito eu me sentir como se estivesse perdendo alguma coisa - e eu nunca estive fora de si. O ambiente no Maiden sempre foi sobre música, numa perspectiva quase calvinista às vezes. Sempre fomos livres para fazer o que quiser em nosso tempo livre - mas o desempenho tem que ser 110% todas as noites, e se não foi porque você estava na farra na noite anterior, certamente algo será dito." Na verdade, na primeira turnê americana de Bruce com o Iron Maiden, em 1982, com o álbum The Number of the Beast foi tão desgastante que o tour manager da banda adormeceu em pé e caminhou dormindo para fora do palco e acabou quebrando o pulso.

Na época desta entrevista, quase cinco meses após seu tratamento ter terminado, Bruce já deveria estar em turnê outra vez. O Iron Maiden parece ser a banda de Heavy Metal Duracell: pois apenas continuam indo... e indo. Parte disso por nunca ter estado na moda e não precisarem se preocupar de ter que sair dela. Agora, em sua quarta década como uma banda, eles permanecem com um dos melhores cachês do mundo, tendo vendido mais de 90 milhões de álbuns, com quatro discos atingindo a primeira posição no Reino Unido. Os shows europeus no Verão de 2013 (parte de uma turnê gigantesca de dois anos, a Maiden England) arrecadou algo em torno de US$ 19 milhões, mantendo a cantora Taylor Swift fora do número 1 na lista Hot Tours da Billboard. Muitos dos rostos na primeira fila dos shows agora são jovens o suficiente para serem seus netos (com 57, Bruce Dickinson é o mais novo da banda).
O lançamento de The Book of Souls, o novo álbum duplo do Maiden - seu 16º - foi adiado por causa da doença de Bruce. A turnê não deve começar até fevereiro, para dar à voz de Dickinson mais tempo para se recuperar. Mas com 60 shows, durante cinco meses e 35 países, incluindo China, África do Sul, América do Sul, Central e do Norte, Austrália, Japão e toda a Europa – a promessa é que esta seja uma turnê "épica".

Mais uma vez, além de estar no palco, Bruce, que é um piloto experiente, terá a responsabilidade de levar a banda, equipe, instrumentos, cenografia, mesas de mixagem - e tudo que é necessário a produção em escala gigantesca - ao redor do mundo em um Boeing 747 Jumbo. (O Iron Maiden já fez isso duas vezes, mas antes em ambas as vezes em um Boeing 757, que é bem menor).

"Significa que nós podemos ir absolutamente para qualquer lugar", ri Dickinson, "e carregar até quatro vezes mais coisas, que significa um show muito maior... e se você estiver se recuperando da luta contra um câncer, vamos lá!"



Assim, sem pressão, então

"O inferno precisaria congelar antes que me impedisse de ir para cima do palco. Mesmo que outro alguém tivesse que cantar e tudo que eu pudesse fazer fosse correr e agitar a porra dos meus braços. Mas acho que não será o caso. Eu estava cantarolando um pouco ontem e pensando, 'Oh, isso está soando muito bem, de verdade..."

Bruce comenta que muitas vezes encontra incredulidade nas pessoas, que teimam em acreditar que o Iron Maiden ainda continua. "Elas dizem: 'vocês são homens adultos – vocês não estão falando sério a respeito disso, não é? Como você pode fazer essas coisas com cinquenta anos? Você deveria estar criando cavalos de pólo como aquele cara do Roxy Music, ou gerenciando um criadouro de trutas!' E nós: 'Não, nós ainda vamos continuar tocando'. Eu não sei se nós nos tornamos o fim de heavy metal do Coldplay. Foda-se , eu não sei! Mas este material da Donzela , é nossa herança e nossa jornada. "

Dickinson não pode ter uma fazenda de trutas - mas tem a Cardiff Aviation, a empresa da qual foi co-fundador, três anos atrás. Uma semana depois de nos encontrarmos em Londres, peguei o trem com Bruce para Cardiff e ele falava muito empolgado por todo o caminho até lá, salpicando seus causos nas alturas com estatísticas, fatos históricos e figuras. Ele possui uma memória enciclopédica - a revista Intelligent Life uma vez nomeou-o como um exemplo vivo de um polímata. Segundo ele, voar é seu "antídoto" para a bolha que é ser uma estrela do rock: "Eu tinha que fazer algo mais, apenas pra manter meu cérebro vivo." E parece ter funcionado.

A Cardiff Aviation ocupa dois hangares, um no aeroporto de Cardiff e o outro, um pouco distante, dentro de uma base do Ministério da Defesa em St. Athan. Ambos estavam vazios quando Bruce e seu parceiro de negócios, Mario Fulgoni, fecharam a sua compra. Com um investimento inicial de £ 500.000, eles construíram um negócio próspero com 150 funcionários e que vai gerar algo entre £ 10- £ 20 milhões este ano. É uma "loja de manutenção, algo que não foi feito antes" e que funciona com a flexibilidade de uma start-up. Um centro de treinamento de pilotos, com três simuladores de vôo gigantes que parecem com tripés de A Guerra dos Mundos; uma empresa de manutenção de aviões, com uma equipe mecânica formada em sua maioria por ex-membros da RAF, com um arsenal crescente de especialistas e uma parte operando na linha aérea, que vai executar voos europeus em uma companhia aérea experimental que até agora conta apenas com um avião - um Boeing 737 -, mas está se preparando para mais três até o verão do ano que vem.

Na Cardiff Aviation, Bruce salta para dentro do cockpit de um simulador de 747 em que ele vai praticar antes de voar com a banda no próximo ano. Ele escala o motor do 737 para posar para fotografias, desaparecendo durante 30 minutos para levar o fotógrafo e eu para uma cerveja no pequeno pub dos pilotos perto da pista (ele parece conhecer todos lá e ninguém parece remotamente deslumbrado pela presença de um rockstar). Ele diz que foram "semanas" antes que ele pudesse desfrutar de uma cerveja novamente depois de seu tratamento. "Tudo o que eu sentia era um gosto amargo e queimado, então um dia eu tomei um gole e... ah! Toffee e caramelo! O paladar voltou em etapas". Dickinson nos leva para dar conhecer seus escritórios - há fotos emolduradas do Eddie, o mascote macabro do Iron Maiden, Spitfires (aviões de guerra britânicos) e uma de Churchill, com a famosa frase: "Nós nunca nos renderemos...".

Bruce só aprendeu a voar quando tinha 30 anos, porque o baterista do Iron Maiden, Nicko McBrain, aprendeu primeiro, e "se um baterista consegue fazer isso, qualquer um pode", brinca. Ele queria ser piloto desde que era criança, pois seu padrinho tinha sido um piloto de caça na Segunda Guerra Mundial e alimentou sua jovem imaginação com contos sobre Aviões de Guerra e Furacões. No entanto, ele sentiu que "não tinha o background correto", o que parece ser surpreendente, pois Dickinson estudou em Oundle, um internato pago. Seu pai era um mecânico do exército, sua mãe, que o teve com apenas 17 anos, trabalhava meio período em uma loja de sapatos.

O vocalista diz que não se sentia próximo de seus pais; ele foi criado em parte por seus avós em Worksop, enquanto seus pais se mudaram para Sheffield e tornaram-se corretores imobiliários bem sucedidos, o que lhes permitiu enviar Bruce para Oundle (escolhido, Dickinson diz, pois sua tia Dee era uma cozinheira lá).

A escola era "muito estranha. Havia coisas que eu gostava - Fiz muito teatro amador lá, e escrevi muitas coisas. Eu aprendi sobre improvisação. E trouxe tudo isso para o Rock 'n' Roll alguns anos mais tarde. Mas eu tinha muita opinião e isso não é uma coisa boa para um garoto calouro no internato. Apanhei por cerca de dois anos."

Seria pelo fato de você não ser de uma família da classe média?

Dickinson pensa um pouco. "Não, isso seria muito conveniente. Não era por causa de um sistema de classes, era o sistema tribal. Pequenas tribos se formam dentro de grupos de crianças. E isso acontece nos playgrounds do mundo todo."

Em Oudle, segundo Bruce, a violência era institucionalizada - "Os alunos eram espancados por transgressões menores" – o que levou Dickinson e um amigo a urinar, em retaliação, nos feijões verdes do Diretor antes de um jantar formal. (O prato estava sendo preparado pelos monitores, que ficaram sem bocas de fogão na cozinha e requisitaram as bocas de fogão extras nos dormitórios; a oportunidade de adicionar um ingrediente extra era boa demais para perder.) Ele foi expulso, embora o outro garoto tenha sido poupado: "Ele era um candidato a Oxbridge. Era melhor para as estatísticas" E assim Dickinson foi parar na escola, rei Edward VII em Sheffield - "Uma boa escola, na verdade" - e então ele juntou-se a sua primeira banda.

Com o trem de Cardiff nos levando de volta para Paddington, eu pergunto o que ele aprendeu com sua experiência com o câncer . "Não deixe as outras pessoas desperdiçarem o seu tempo", diz ele em um flash. "Deixava as pessoas me convencerem a fazer as coisas: 'Oh, eu tenho que fazer isso, eu tenho que fazer aquilo'. Não, na verdade, eu não tenho que fazer nada. Se eu optar por perder meu tempo, é escolha minha - Não quero que outras pessoas façam isso em meu nome".

Difícil imaginar Bruce Dickinson perdendo tempo (ou desperdiçando seu tempo). O nosso tempo, no entanto, está quase no fim. Ele falou por quase quatro horas e sua voz precisa de um descanso. "Me perguntei como seria se eu saísse dessa e não fosse capaz de cantar novamente", ele reflete. "E pensei, como você se sente sobre isso? E então eu pensei, bem, isso seria uma verdadeira vergonha - mas ao menos estaria vivo".